A Identidade de um Imigrante Aceitável
- O Cronista
- 9 de jul.
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Em meados dos anos 80, o cenário de quadrinhos americanos de super-heróis estava passando por um novo processo de reformulação. A DC Comics comemorava em 1984 seus cinquenta anos de atividade, assim, foi iniciado o planejamento da publicação da consagrada saga de doze partes, Crise nas Infinitas Terras, com roteiro de Marv Wolfman, desenhos de George Pérez e cores de variados artistas. A série, que estreou no ano seguinte, também serviu para organizar a cronologia da editora, que, ao longo dos cinquenta anos de produção e publicações que muitas vezes não seguiam uma lógica sequencial, inevitavelmente gerou um conjunto de incoerências narrativas. Porém, criou-se a demanda de um reinício para alguns personagens centrais, entre eles Superman, Batman e Mulher Maravilha.

Os lençóis estavam limpos e a cama arrumada, era hora de deitar-se. Em 1986, pelas mãos de John Byrne, é publicada O Homem de Aço, uma minissérie em seis edições que reformula as origens do Superman, abordando novos temas e alicerçando as bases para as histórias adaptadas ainda hoje em diversas mídias.
Para compreender melhor um dos aspectos dessa nova abordagem do personagem, é fundamental olhar para seu reformulador. Byrne é britânico de nascimento, no entanto, aos oito anos, ele se mudou para o Canadá, onde se naturalizou. Tendo consciência de sua realidade, ele sempre enxergou com olhos estranhos a maneira como o Superman se comportava, algo como se não houvesse um sentimento de pertencimento à terra onde o personagem morava. John Byrne conseguia enxergar o homem de aço como ele era, um imigrante. Curiosamente, essa característica óbvia não tem tanto espaço nos gibis (e nem no cinema), sendo abordada em momentos pontuais, quase como se o personagem fosse um tipo característico de imigrante aceitável de quem interage com ele.
Pelas mãos de Geoff Johns, Gary Frank e Jon Sibal, em abril de 2009, a história que ficou conhecida no Brasil como Superman: Brainiac é publicada em cinco partes, e nela podemos observar um pouco desta característica do super-herói nas páginas. Quando enfrenta o vilão da história, o alienígena Brainiac, um conquistador que invade planetas para roubar seu conhecimento, sequestrar pessoas e por fim destruir tudo, Superman declara com orgulho suas origens kryptonianas. Neste gibi, que apresenta a melhor representação de um dos inimigos mais importantes do herói, e responsável por sua imigração forçada, é interessante ver os artistas abordando, mesmo que brevemente, o protagonista reforçando sua herança, sua identidade em um momento de crise.
Já no arco intitulado Efeito Oz, de 2017, uma situação digna de nota que acontece ainda no início da história envolve a ação de dois indivíduos que planejam um atentado contra trabalhadores imigrantes. A justificativa que eles usam para este disparate é que aquelas pessoas “tomaram” os empregos deles. O curioso é que um nível de hostilidade como este raramente é visto direcionado ao Superman. Em suas histórias mais conhecidas, ninguém nunca tentou matá-lo usando como motivação sua condição como imigrante.

Para além disso, em tempos onde a migração forçada, ou não, induz pessoas a saírem de suas moradas para caçar um sonho, melhores condições de vida ou mesmo chances de sobrevivência em outro país, e são perseguidas por serem quem são, é muito interessante compreender que um dos principais vilões do Superman – um imigrante que raramente sofre com os problemas da imigração – foi reformulado por Byrne com base em quatro indivíduos peculiares. Em outras palavras, Donald Trump, Ted Turner, Howard Hughes e Satanás são as bases para o Lex Luthor moderno. O resultado idealizado por John Byrne foi a troca de um cientista louco por um empresário inescrupuloso e quase desumano.
É essencial ter em mente que em quase cem anos de criação, fazendo parte da vida de milhões de pessoas e com milhares de quadrinhos publicados, uma história abordando a população e autoridades americanas ou de qualquer lugar do mundo demonstrando incômodo por abrigarem no planeta um imigrante clandestino como ele é algo raro de se encontrar. Quando expressam algum temor, em geral, não é por saberem que ele originalmente é de outro lugar, mas por saberem o que ele é capaz de realizar. De maneira generalizada, as histórias do Superman apresentam um personagem que sente orgulho de suas raízes e reconhece o lugar onde vive como seu também, porém, nos mostra uma sociedade que não se perturba com suas origens, afinal, ele tem a aparência mais aceitável.

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